As aulas iniciaram de forma remota, com encontros virtuais, após
passarem por um período de adaptação por causa da pandemia. Uma
pessoa de nossa turma mora em aldeia indígena e quando entra na
sala ou ligava o microfone, o som do ambiente se destaca. Em
contraste com a voz dos demais alunos e do professor, isolada em um
fundo opaco, a dela vem acompanhada de um farfalhar de galinhas e
passarinhos. Eu consigo visualizar a terra batida e a sombra das
árvores. O cheiro do mato por pouco me escapa e me lembro do plano de ter uma casa com galinhas
no quintal. Minha mãe e minhas tias contavam com alegria que
cresceram em uma casa onde criavam galinhas e porcos – acho que foi
daí que tirei essa ideia.
Eu costumo assistir as aulas virtuais no quarto, me isolando do som
da casa e deixando a câmera desligada para garantir a conexão da
internet. Em uma manhã a voz do professor parecia tão monótona que
adormeci. Nesse dia específico eu estava com cólicas e mal consegui
levantar da cama para ligar o microfone e garantir minha presença.
Sonhei com papagaios e araras azuis. Uma arara estava no quarto da
casa da minha avó. A ave parecia machucada, mas pulou pela janela e
lá no quintal deu de encontro com uma arara mãe que a ameaçou,
protegendo por sua vez, o seu filhote. Havia uma criança comigo no
quarto e eu tinha que cuidar dela, então peguei-a pela mão e disse
para irmos lá fora ver o animal, pois minha preocupação era que
os bichos se ferissem mais. Para minha surpresa, o quintal era um espaço
mais amplo do que a casa da minha avó e encontrei alguns colegas de
turma. Eles também queriam ver as araras. Mas quando adentramos a
cerca não conseguimos ficar muito tempo, havia um tucano azul na
copa de uma das poucas árvores, enquanto as outras aves mais
coloridas estavam presas em gaiolas. Por fim, quando olhávamos para
o chão víamos papagaios e araras mortas, esmagadas tal qual pombos
nas ruas das grandes cidades.
Acordei quando o professor fazia uma crítica a quem ele chamava de
primitivistas: pessoas que idealizam a vida dos povos indígenas,
como se estes tivessem a melhor organização de trabalho, divisão
mais justa de poder entre gêneros e harmonia com a natureza, além
de uma pureza moral.
Lembrei que antes de eu pegar no sono, o professor falava sobre nossa
geração ter uma aversão à palavra progresso como se ela fosse o
maior dos males da atualidade. “O progresso técnico e científico
trouxe malefícios e benefícios. Hoje se fala como se o
desenvolvimento fosse só problema, mas na verdade a democracia é
parte do progressismo. Quem vai dizer que é contra a democracia?”
Então lembrou que estamos sob o regime de Bolsonaro – “sei
existem grupos hoje que defendem a ditadura, mas tirando esses, não
há quem discuta que a democracia é o melhor regime de governo”.
Disse em sotaque francês.
De volta ao assunto dos primitivistas, um aluno ponderou que o
postulado geral, apesar do romantismo, tratava da
comparação entre as sociedades que aderiram à forma política do
Estado e do capitalismo, e as demais que não aderiram e, não
coincidentemente, são menos violentas, tanto no aspecto de que matam menos internamente quanto matam menos outros povos. Mas de acordo com o professor
esses estudos tinham sido feitos por jovens
entusiasmados que morreram cedo sem a oportunidade de reverem seus
escritos, a mesma linha seguem outros estudiosos cujo maior interesse
era político, projetando nos povos indígenas suas próprias
utopias.
É verdade que há um tanto de ficção nos estudos sobre sociedades
comunais, comunitaristas, assim como há um tanto de fé na ideia de
fim necessário do capitalismo. Não vejo problema em admitir isso e
ao mesmo tempo dar continuidade aos estudos que se pretendem mais descritivos junto às comunidades interessadas. A questão é que todas
essas chamadas utopias, projetadas seja no passado seja no futuro,
foram fundamentais para a construção das condições reais de vida social alternativas ao capitalismo e ao estado. Negar
isso é podar as asas dos passarinhos, é prender em jaulas a
imaginação dos estudantes.
Aprendi com os malucos, com os artistas e com as crianças da
minha vida que misturar o real e o imaginado, a verdade e a
utopia, nos faz mais humanos, melhores humanos. Separar demais essas
duas coisas levou parte da humanidade há vários avanços, mas nos
trouxe de volta um acúmulo de extermínios, guerras
mundiais e bombas atômicas. Não bastasse isso, o progressismo não
escapou às suas próprias utopias. Do lado de cá do globo, onde sequer o problema da fome foi resolvido, a democracia ainda existe como
ficção.
Assim, o inimigo do conhecimento não é a utopia, não é o desejo,
a fantasia, não é a religião ou a magia. O inimigo do conhecimento
é a imposição de uma verdade através do ato de exterminar,
estuprar, escravizar, explorar pessoas e outras formas de vida. É
incrível e fabuloso pensar que um grupo de pessoas conseguiu
fazer um homem pisar na Lua. Mas é inútil colocar esforços para
que nos tornemos uma só civilização de indivíduos corpenicanos,
de sujeitos extremamente comprometidos com uma ideia de verdade,
assim como é demais exigir de bom estudo social a ausência de uma dose de imaginação política. O progressismo faz um bom serviço ao
contrapor os terraplanistas, negacionistas, criacionistas,
fundamentalistas, todas essas formas de suposto conhecimento que
servem à dominação. Mas deixem trabalhar aqueles que se
propõe a dar voos mais longos, imaginando como o mundo poderia ser enquanto alimentam suas galinhas.