Um
ex-jovem-punk que conheci naquele dia me disse que não se nadam
mais nelas, pois os esgotos da cidade tudo
caem ali. Tudo merda desses prédios burgueses. Tá vendo que não
tem ninguém no mar? As pessoas vêm para caminhar. Quem tá no mar
geralmente é gringo. Dois casais de adolescentes estavam na areia
escutando música.
Eles sentados de frente pro mar, elas dançando na frente deles. O
rapaz
com
quem eu conversava havia
se
oferecido para
me
hospedar
em sua casa
então eu ia usar o dinheiro economizado para conhecer
os arredores.
Ele me dizia que o melhor
passeio
era
pelo
São Francisco. Mas eu desconfiava. As mais belas praias do Brasil
estão em Alagoas, como poderia um rio competir com esse mar?
O
amigo me
contava que,
quando era um garoto punk,
andava
muito
por essa mesma praia com
os
seus,
até o dia em que percebeu ser o único homem
preto no grupo e que ninguém se importava sobre quanto tempo ele
demorava para chegar em casa pegando
ônibus
depois de cada atividade. Com o tempo, ele se envolveu com o
movimento de moradia que se situava próximo da sua casa, longe do
centro. Passou muito tempo lá. Seu pai perguntava quando é que ia
ganhar uma casa. Hoje o antigo
anarquista
está
filiado a um partido onde continua sendo uma das poucas pessoas
negras e
ainda
cogita disputar as eleições locais. É o desejo de fazer algo a
mais, além de contar as mortes dos meninos como os viu crescer e
que se vão como nada fossem. Sempre se falou que por aqui mata-se
por pouco, pela escassez de alimento, qualquer troco errado, a
desonra de um amor minguado. Mas agora mata-se ainda mais pelos
grandes empreendimentos vindos do sul. As ordens das facções e da
força nacional inseridas nos gestos, nas roupas, nos cabelos, nas
calçadas, nas palavras que narram as tentativas de extermínio
dessa gente imberbe.
Nos
conhecemos em
uma
ocasião
de trabalho, justamente
sobre esse assunto.
Ele estava me flertando, mas eu fingia que não percebia. "Se
eu tivesse dinheiro iria fazer esse passeio com você". Eu
estava emocionalmente destruída do último romance em que eu havia
me metido e não conseguia sequer ser gentil como se espera de uma
jovem sozinha em uma cidade desconhecida na véspera do carnaval. Já
estava escuro quando saímos do bar. Caminhamos pela orla sentindo,
ora ou outra, o odor
que a brisa trazia. E
quando passamos pela estátua
de Graciliano Ramos decidi dar uma chance ao interior de Alagoas. Vou aos Cânions!
Era
o passeio mais distante e mais caro oferecido pelas agências
informais de turismo. É necessário acordar de madrugada para pegar
a van, chegarmos no local antes do almoço e depois estarmos de
volta ao anoitecer. O local conhecido como Cânions do São Francisco fica no Xingó, atravessando a
divisa com Sergipe. Outras vans, cheias de pessoas prestes a
conhecerem a grande obra do desenvolvimentismo, já estavam
estacionadas. A barca nos esperava, também as caipirinhas e o pouco
contato humano. A grande luminosidade do sol deixava todo
branco ainda mais branco,
como um comercial de sabão em pó e contrastava com os óculos
escuros que impediam que cruzássemos olhares.
O
barulho grave do motor era encoberto pelas músicas consideradas
tipicamente nordestinas. Por vezes, o som parava e uma voz no rádio
explicava informações sobre onde passávamos. "Antes da
barragem hidrelétrica ser construída, o rio São Francisco tinha
de 50 a 30 metros de profundidade, hoje chega a 150 metros".
Eu
ainda não tinha entendido em que época o rio havia sido represado,
a situação toda me remetia as recentes intervenções para a
construção da usina de Belo Monte, tornando-se assim, confusos os
tempos e as tenções, os dizeres que rebentavam em meus ouvidos.“A
direita encontra-se o Morro dos Macacos, porém desde que o rio foi
contido não há mais macacos. Hoje o local é habitado por aranhas
que se adaptaram muito bem ao novo habitat".
Eu
fixava o olhar no horizonte, esperando que o vento secasse meus
olhos.
Uma jovem simpática dos seios de silicone tirou uma foto desse
momento, compondo minha tatuagem na paisagem e me perguntou se podia
ficar com o registro. Respondi que sim, também simpaticamente,
acendendo
em
ser
mais uma
em meio tantos
produtos.
Em
uma das curvas paramos para que apreciássemos a imagem de São
Francisco de Assis encravada em um buraco na parede rochosa. A rádio
começou a tocar a oração bastante conhecida do padroeiro do rio,
mas houve um certo constrangimento quando boa parte das pessoas
permaneceu calada com os olhos baixos por considerarem que o culto
de santidades pode levá-las ao inferno, mesmo sendo um santo tão
inofensivo
como esse, por
quem até
os
moderados
ateus se afeiçoam.
Então
chegamos no ponto onde foi construída uma cerca aquática para que
os banhistas aproveitassem a natureza dentro de um perímetro
controlado. E como fosse uma grande conquista chegar até ali, o
rádio toca a música das olimpíadas nos produzindo emoção,
afinal pagamos para isso. Você ainda pode pagar mais para fazer um
passeio em um barquinho a remo até uma gruta.
Mergulhei
tentando afogar meus pensamentos, as águas dissipavam o som dos
meus gritos até eu sentir o ressoar alguma alegria, ainda que
sarcástica, que resistia dentro de mim. De volta à terra, fomos
todos ao restaurante. O almoço estava incluso no preço do passeio
e você não tinha escolha de pagar só pelo passeio. A bebida era à
parte e paguei 4 reais a garrafinha de água mineral enquanto via a
propaganda que repetia em todas as telas onde um casal rico conhecia
os cânions de helicóptero.
De
volta à van, pegamos a estrada e fizemos uma parada onde era
possível ver as
comportas.
Os guias pediram para que todos passageiros se juntassem para fazer
uma foto. Conta-se que por conta da
barragem
os peixes ficaram represados, acabando com o trabalho de várias
famílias, mas ajudou o abastecimento de cidadezinhas e grandes
fazendas. Os pescadores pedem para a hidrelétrica abrir um pouco as
comportas na época das cheias, mas a empresa regula, dona da água
e dos peixes. Foi assim que muitos filhos de pescadores viraram
guias turísticos.
Percebe-se
que o volume de água nessa parte é bem menor do que onde estávamos
anteriormente, mas nem por isso o rio era menos perigoso, suas águas
produzem redemoinhos. Um pouco à frente o guia mostrou onde o ator
da Globo morreu afogado entre as cenas da novela Velho Chico. "Quem
conhece o rio sabe que não pode nadar ali. Muito menos comer
pitanga" - piada repetida algumas vezes, referente à atriz que
fazia par romântico com o falecido.
A
próxima parada foi na cidade histórica de Piranhas onde
assassinaram Lampião e seu bando. Apontaram a escadaria onde as
cabeças foram expostas pelos homens da lei que combateram o terror
que os levavam às pacatas e honestas cidades, diziam eles. No museu
você paga um real para ver as fotos do acontecido e os pertences
dos mortos. É o mesmo preço se você quiser usar o banheiro que
fica no galpão da feira de artesanatos, em frente ao museu. Entrei
no banheiro pensando sobre onde o progresso tem nos levado. Tive de
dar descarga três vezes. E quando fui lavar as mãos a imagem de um
cangaceiro passou pelo espelho. Por alguns instantes achei que ele
algum trabalhador usando traje temático estava atrás de mim.
Talvez eu entrara no banheiro errado. Havia uma neblina subindo e
embaçando a imagem do que eu via. Então percebi que ele estava
dentro do espelho. Era um homem de um remorso envelhecido no olhar,
havia alguma dor que o movia. Ele se dirigiu a mim, confessou-me que
seu companheiro não morrera das feridas da batalha, que jamais
terminaria assim, isso era fato. Mas que a palavra, como o rio, nos
leva a caminhos traiçoeiros a depender não só de quem conta
também para quem se conta. Guardara esse segredo a vida toda, por
não ter a quem dizer. A travessia não terminou, o que me faltou
foi coragem para segui-la. A raiva que se entranha em ti é
Diadorim, ela poderá contar-te sobre outros caminhos, onde a
justiça é possível, teu gênero livre e talvez até o amor. Peço
que o leitor perdoe esse romantismo revolucionário, mas sendo-lhe
próprio do sertão, cada um leva aquilo que lhe
destina e nenhuma palavra a mais.
No
fim do dia tive receio de estragar as memórias de infância do meu
amigo ex-punk quando nos encontramos e não pude esconder minha
expressão de derrota quando contei do passeio. Mas ele apenas
comentou que as coisas têm mudado, que na sua época a modernidade
não era tão brega. E absolveu-se quando, no dia de sua folga, me
levou a conhecer uma praia no município próximo onde sua mãe
havia comprado um pequeno lote financiado. A cidade onde ela cresceu
fica ao lado de uma vila de pescadores. Um pequeno trecho de mata
nativa separa o mundo da praia. A calmaria do mar ressoava
imediatamente às vísceras, o horizonte aumentava a amplitude do
globo ocular enquanto a retina se acostumava a absorver a paisagem.
As grandes redes de hotéis em breve vão chegar, meu
amigo
disse. O
litoral todo ressoou.
Nenhum comentário:
Postar um comentário