A voz surgia após alguns minutos caminhando até o ponto de ônibus depois do trabalho. Narrava e enquadrava sua vida naquele espaço
junto das pessoas que também começavam a fazer seu trajeto pra
casa e compunham a paisagem cotidiana no crepúsculo. A voz observava também seus passos firmes em delicadas sapatilhas, figura que lembrava uma
velha chinesa e sua magnífica força em um corpo que resiste no atrito do andar em um solo ainda mais duro.
Em meio ao barulho as pessoas dizem que não conseguem ouvir
seus próprios pensamentos. Também nesse caso a voz surgia por conta
do silêncio, mas que emergia de dentro. Por alguns instantes
conseguia não pensar em nada, deixava a narrativa se guiar
pelas sensações que o mundo oferecia. Queria que a narradora
continuasse ali para sempre, pois lhe dava segurança.
Nada a fazia se sentir tão plena do que narrar sua própria
história.
Curiosa a relação entre a voz e os espaços. Durante o sexo, vez
ou outra a voz surgia trazendo o mundo e seus personagens para o
quarto, o que a fazia gozar com certa sede de vingança.
Em casa conseguia ouvir a narrativa quando passava um tempo reclusa. Todas as vezes quando entrava no banheiro, sem que ao menos
percebesse, os pensamentos mais obsessivos a trancavam no cubículo do box
ou na frente do espelho. Tudo o que não tem coragem de sair era remoído ali. Quando criança no caminho da escola para casa, possuía
pensamentos repetitivos conforme os locais que passava, o desenho da
rachadura na calçada, o padrão da grade do portão, o nome engraçado de uma flor, o olho morto de um cachorro.
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