sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Um mergulho

O espelho outra vez, dessa vez aquele do banheiro, com bolinhas brancas da pasta dental. Não escovava os dentes, muito menos o cabelo, não se maquiava, não lavava a cara recém acordada nem estava a observar os poros empretecidos. O cabelo estava molhado, todo para trás deixando a cara nua, também molhada. Havia sua imagem embaçada e no vapor, palavras podiam ser lidas. Sentia que tudo que escrevia era de uma infantilidade que lhe envergonhava. Palavras fortes como "sempre" e "nunca", as quais se apega tão dramaticamente, mas que no final não denotam diferenças. Parou de enxugar as orelhas, passou a toalha no espelho e olhou-se nos olhos. É importante olhar nos olhos ao conversar, mesmo num diálogo mudo e também quando o interlocutor não existe fora de você.
Lembrou-se dessa imagem, pois já a experimentara quando era garota. Quando seu mundo era seu e a cada vez que conhecia um novo pedaço, sabia falar sobre ele com a beleza da espontaneidade. Não conhecia-o ao todo com muita clareza, mas é assim, com tudo que é profundo. E ao mesmo tempo não lhe era absolutamente escuro, não para seus olhos. Como acontece aos animais que vivem nos abismos dentro dos oceanos.
Agora parecia que o mundo não lhe pertencia. Ás vezes parecia que formado de outros quase infinitos oceanos, que ela jamais alcançaria e por isso tudo parecia superficial. Ou talvez ele seja de uma simplicidade técnica que caberia em manuais de utilização como esses campeões de venda nas livrarias. O problema era não saber se era um ou outro, era desconhecer, por isso sentir à parte, uma incurável indiferença; não que isso a deixasse triste, era mais como se, olhando de fora, tudo estivesse em seu devido lugar.
Enxergava com seus olhos, novamente e nada mais do que isso lhe dava confiança. A segurança que só deseja porque é o que sempre permanece, o que sobra.
* * * *
Eles pouco se conheciam naquela época em que ele olhava muito em seus olhos e isso não a deixava á vontade, não por se ver espelhada nas retinas dele, mas ao contrário, porque não se via. A imagem formada nos olhos dele era tão brilhante que lhe ofuscava a vista. Por isso ela piscava muito. Ele ria ao vê-la piscar e ela ao sentir-se olhada. Entre risos e olhares ela não só acostumou-se a ver-se nos olhos dele como passou a ver-se através deles. Mergulhou no lago brilhante e espelhado que eram.
Hoje, diante do espelho, voltou a enxergar com seus próprios olhos, percebeu como passara esse tempo limitada como numa lagoa e reconheceu então seu oceano, azul imenso de solidão, gotas d'água salgada.

fundo sonoro: Great Expectations - Cat Power