quinta-feira, 9 de julho de 2015

Pouco antes das 18 horas ao sair pela porta do edifício em que trabalhava, Eli caminhou pelo estacionamento entre as paredes espelhadas e desceu a escadaria de concreto. 
Nesse caminho fora acompanhada por sua desagradável imagem refletida em todo lado e por uma dúzia de homens de corpo pintado. Saíram por detrás de um dos prédios e aos poucos caminhavam todos para a mesma direção. Alguns usavam cocares e um deles registrava em sua câmera o edifício de um banco e o trânsito dos carros. Na baixada íngreme até o semáforo não utilizaram a escada, mas a rampa sem qualquer dificuldade. Eli não conseguiu disfarçar sua curiosidade, por isso, enquanto esperava o semáforo, foi fotografada como resposta e provocação.
Ao atravessarem a faixa, separaram-se. 
Subindo agora por um caminho de terra até uma pequena aglomeração de pessoas que conversava ao redor da churrasqueira, o cheiro de gordura e cigarro mexia com seus sentidos enquanto a fumaça e os motores dos ônibus a fazia retrair todo corpo. 
Seguia em rumo a outro semáforo que levava à rodoviária. No caminho, um amontoado de palha de milho no chão sem sinal de quem o venderia. Ali do pequeno cume era possível ver os ambulantes com suas mercadorias e ouvir seus dialetos que traziam vida ao dia nublado. Roupas, vídeos, brinquedos e frutas traziam diversos estímulos aos olhos. Ficavam de frente a uma via de grande fluxo e o semáforo demorava para abrir aos pedestres, por isso acumulava-se um batalhão de gente em ambos lados da pista. Nos buracos deixados pela frequência irregular de carros alguns ansiosos se arriscavam calculando mais ou menos o tempo. Em ritmos saltados saltando em ritmos quebrados entre as faixas brancas no asfalto. Eram como notas musicais na partitura de jazz. Esses aventureiros eram os metais que abriam a música. Eram seguidos pelo ruído contínuo das rodas dos últimos carros passando por cima da linhas e, ao abrir o sinal para os pedestres, as graves e rápidas batidas dos pés davam a harmonia. 
Sem escutar a música, esperando os carros pararem, a maioria das pessoas permanecia em seus lugares, como um exército em frente ao outro. Até que, permitida a passagem, se encaravam por meio segundo e seguiam em frente buscando evitar o confronto - algumas vezes sem sucesso. Crianças eram puxadas pelo braços, pois não perceberam que era hora de andar. Um segundo pelotão vem logo atrás, desorganizado, correndo e desviando. Seguram o tempo do sinal verde. Para todos dos pelotões que atravessaram a grande via, o destino os aguardavam além do horizonte, o confronto se daria dentro de suas casas e trabalhos. Ali onde cada um luta com as armas que tem.
Já na rodoviária, Eli aos poucos começava a perceber a música da rádio pública. Antes mesmo de escutar seu ouvido já procurava. Geralmente não gostava das músicas, mas sabia as letras e cantava junto. O que importava era poder cantar e não ser ouvida no meio da multidão em guerra.
Na plataforma de cima a realidade era outra. O semáforo ali se transformava em sugestão, pois maioria das pessoas atravessava independente da cor do sinal, muito despreocupadas com a frustração e com as buzinas dos motoristas. Ali percebemos que não é o tamanho nem a velocidade dos carros que faz os motorizados mais poderosos, a questão é a quantidade de carros e a quantidade de gente disputando o espaço da rua. Se as pessoas atravessam o carro tem de parar.
Nesse início de noite, junto à sensação de libertação ao sair do expediente, Eli observava toda essa dinâmica da cidade e se sabia parte dela. Nesses momentos sentia como se a revolução já tivesse acontecido, como se ela acontecesse a toda hora e só os poderosos ainda não se dessem conta. Vivemos aqueles segundos das crianças que se machucaram e ainda não perceberam. Os olhos se distraem esperando a mudança da luz no sinal. Em breve, não se sabe quando, chorarão não da dor, mas do choque assim que virem o sangue pingar. .

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A voz surgia após alguns minutos caminhando até o ponto de ônibus depois do trabalho. Narrava e enquadrava sua vida naquele espaço junto das pessoas que também começavam a fazer seu trajeto pra casa e compunham a paisagem cotidiana no crepúsculo. A voz observava também seus passos firmes em delicadas sapatilhas, figura que lembrava uma velha chinesa e sua magnífica força em um corpo que resiste no atrito do andar em um solo ainda mais duro.
Em meio ao barulho as pessoas dizem que não conseguem ouvir seus próprios pensamentos. Também nesse caso a voz surgia por conta do silêncio, mas que emergia de dentro. Por alguns instantes conseguia não pensar em nada, deixava a narrativa se guiar pelas sensações que o mundo oferecia. Queria que a narradora continuasse ali para sempre, pois lhe dava segurança. Nada a fazia se sentir tão plena do que narrar sua própria história.
Curiosa a relação entre a voz e os espaços. Durante o sexo, vez ou outra a voz surgia trazendo o mundo e seus personagens para o quarto, o que a fazia gozar com certa sede de vingança.
Em casa conseguia ouvir a narrativa quando passava um tempo reclusa. Todas as vezes quando entrava no banheiro, sem que ao menos percebesse, os pensamentos mais obsessivos a trancavam no cubículo do box ou na frente do espelho. Tudo o que não tem coragem de sair era remoído ali. Quando criança no caminho da escola para casa, possuía pensamentos repetitivos conforme os locais que passava, o desenho da rachadura na calçada, o padrão da grade do portão, o nome engraçado de uma flor, o olho morto de um cachorro.