quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Indião

Quando comecei a trabalhar num lugar perto da W3 Sul foi um alívio descobrir uma linha que fazia L2 Norte-W3 Sul direto. Pra ir eram 15 minutos de viagem. Mas a volta não ia direto, dava aquela volta na Esplanada em horário de rush, o que acrescentava 15 minutos no trajeto - ainda assim era mais rápido do que qualquer outra linha e muitas vezes, quando ninguém ia descer na Esplanada, o motorista simplesmente resolvia não passar lá e então íamos direto pra L2
Esse motorista era um caso de amor e ódio. Durante umas duas semanas eu simplesmente não consegui pegar esse ônibus por culpa dele. Motivos: um, ele nunca passava no mesmo horário. Se eu saía dez minutos antes do fim do expediente, ele passava quando eu estava atravessando a rua. Outros dias eu saía quinze minutos antes do fim do expediente e o ônibus não passava. O segundo motivo é que quando o ônibus passava no horário em que eu estava esperando, o motorista não parava! Se tinha congestionamento de ônibus na rua, ele não esperava os outros saírem da frente pra ele encostar, ele passava por trás de todos e ia embora. Não era raro também ele passar direto mesmo sem congestionamento, bem antes de chegar perto da parada dava pra ver ele entrando na pista mais distante da calçada e acelerando.
No primeiro dia que consegui pegar o ônibus eu estava preparada pra olhar bem pra cara condutor e traçar o perfil de empregado vagabundo, pra ficar observando ele e o cobrador, suas interações, comportamento, sotaques, religiosidades e ignorâncias, tudo que pudesse alimentar minha indignação. Mas subi tentando me controlar e não olhar feio pro motorista. Minha surpresa foi que ele olhou feio pra mim! O cobrador que eu também queria maldizer era uma mulher. Formavam uma dupla e tanto Ela chamava o motorista de Índio ou Indião.
Eu sei que atitude do motorista era muito errada e a cobradora era sua cúmplice, mas não conseguia mais sentir raiva. A cobradora era uma mulher como eu... E eu não podia chamar o índio de vagabundo. Eu tinha o direito de ficar emputecida por ele me fazer pegar outro ônibus, demorando mais de uma hora pra chegar em casa, mas afinal, a maioria dos brasilienses demora isso.
As conversas da cobradora com Indião valiam toda viagem. O motorista fumava, só andava em alta velocidade e mal esperava a gente descer do ônibus. A cobradora dizia que ia sair pra beber com ele e os outros motoristas e cobradores da empresa, ao que parece o Índio era muito popular e ela queria se enturmar com o pessoal do trabalho, mas reclamou que eles só tomavam cachaça. Ela preferia vinho e não podia ser dos muito baratos, porque não adianta beber pra passar mal no dia seguinte, era melhor pagar mais por algo melhor e aproveitar. Mas o Índio ria da moça, gostava era de cachaça mesmo.

Não teve jeito, acabei gostando da dupla do ônibus. Entre a sonoridade do trânsito e do motor do ônibus eu ouvia pedaços de conversas dos dois.
- Já te deram sua folga?
(...)
- Quem vai trabalhar no domingo?
(...)
- Você vai trabalhar no Ano Novo?
- Até trabalho, mas só se me pagarem 80 reais.
- Por 80 eu não trabalho, não.
- Ah, você é motorista, pode cobrar mais, uns 120, mas eu não.
(...)
- Amanhã preciso arrumar meu celular novo. Ele fica vibrando toda hora e eu não consigo mudar, minha filha já tentou. Precisa de uma senha, tem que ligar lá.
- Vai na loja e diz que você queria um celular e não um vibrador.



quinta-feira, 8 de julho de 2010

Terra do nunca

Uma pequena folha seca desce encaracolada no ar às dez da manhã. Antes do almoço as empregadas descem as escadas enroladas com crianças no colo.
Agora as meninas correm com suas roupas rosas. Se não brincarem não sentirão fome. O sol aquece uma mulher no banco, a conversa solidariza outras duas. Eventualmente alguém cai e chora, o que não gera maiores alarmes: questão de sorte: se não fosse você seria a outra.
Pequenas tragédias abulantes, grandes em potencial... 
A claridade obriga-nos a deitar um olhar sombrio.
Vejo os primeiros flocos de paina do ano. Cada um deles guarda uma memória pueril. São necessariamente recentes, pois sua textura, quase insensível ao toque, desmancha-se com qualquer sopro de tempo. Em breve o chão estará branco, repleto de memórias perdidas. Mas parecerá uma grande nuvem e quem quiser ainda poderá brincar de andar sobre elas.

fundo sonoro: The Blues are Still Blue - Belle and Sebastian

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Na terceira do singular

Freqüentemente ao acordar tenho me deparado com um homem nu em minha cama. Na maioria das vezes me cubro e volto a dormir ou mornamente o desperto, pois não acordo de verdade se ele não falar comigo. Em dias, como o de hoje, eu me surpreendo.
Não quero falar da cumplicidade e o zelo que essa relação envolve, trata-se de uma sutil e não necessária implicação.

Acredito que eu nunca havia passado tanto tempo sem escrever. Mesmo com as atividades que me tomam o dia, não dá pra fingir que essa relação não tenha algo a ver com isso. E não foi só a prosa que eu sumiu. O número de pessoas do meu convívio também caiu.
Eu tenho meus momentos a sós, poderia ter mais. Poderiam ser aproveitados para escrever, reencontrar amigos, viver a vida que me é particular. Mas não funciona assim. Era preciso muita consciência de si para fazer essas coisas. Mas se tornara realmente difícil sentir-me sozinha agora. Minha identidade, minha solidão, não se encontram sequer no branco do teto do meu quarto. Na hora do banho viram vapor...
Ainda preciso dos meus momentos a sós, e me orgulho disso. O mesmo parece ocorrer com os segredos que são apenas meus - embora não goste deles em si e prefira esquecê-los.
Há pouco tempo pressenti o perigo de uma crescente perturbação causada pela saudade de alguma de essência minha. Decidi que deveria encontrá-la e tomar as medidas para que acontecesse logo e completamente, sem ruídos. Comprei um maço de cigarros e fui passar uns dias na casa de minha irmã -liguei também pra uma, mas ela tinha outro compromisso.
Imagine que nem de três dias e um cigarro se passou.
Eu sabia bem a direção, as cores e as horas pra onde eu queria voltar. Naquela antiga fazenda, em pé na varanda, meu olhar perdia-se num ponto fixo muito adiante... Eram as mesmas cercas. Não era preciso andar até lá, pois eu podia mais do que vê-las dali, podia segurar as arestas de madeira seca, batê-las o pé, sem vontade de estar ali.
Não importa se mal conheço os ressaltos depois desse limite. Nem sequer sei se existem mesmo ou é a repetição simétrica que meus olhos produzem. É-me indiferente, se eu puder não pensar, sinto que não encontrarei novos tons. Um exaustivo bis de enfrentamentos. Um arco-íris binário. Não, não reproduzirei mais esses passos. Até que as cores amadureçam. E que as rajadas de vento mudem a paisagem.
Eu espero.
Repouso a cabeça no peito dele, quase sem cheiro.
Não foi sem um grande alívio que percebi o privilégio que agora eu tenho de não precisar ser inteiramente. Ultimamente tenho sido mais dele do que sendo. Sua. Sou ela.
Alguém que pega ônibus, vai ao trabalho, faz compras. Mas se você perguntar por ela, ninguém saberá lhe dizer. Ela só existe quando está com ele, a única testemunha.

fundo sonoro: Perfect Day - Lou Reed e Elvis Costello