segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Justiça amadora

A pela morena num tom de caramelo. A cara pequena redonda, os traços finos, os olhos puxados, expressando uma descendência indígena, assim como seus dentes miúdos escondidos pelos lábios longilíneos. O cabelo comprido e liso, de cor amarelo queimado, ora tingido em uma tentativa amadora de disfarce. A história toda passa por amadorismos, porque é um submundo, de consequências sérias, mas sem muitas garantias. A categoria amadora corre sempre mais riscos.
A princípio essa história não me trouxe reações significativas, mas agora não consigo tirá-la de mim. Sua mente saudável, leitor, provavelmente vai achar que essa história se trata de um caso limite, daqueles raros que ajudam disseminar os estereótipos. Sim, você vai usar de um truque mental pra minimizar o impacto. Assim como aqueles que adotam gatos para aliviar o peso das mazelas sociais.
As condições desfavoráveis são tantas que parece ficção, uma síntese das piores possibilidades que podem acontecer em uma vida. É um tanto desanimador tentar contar porque ou o leitor tenderá a minimizar os fatos ou não terei o devido rigor e talento e a história ficará parecendo uma sinopse de um filme dramático e ruim. 
Escrever sobre a vida de alguém é algo um tanto quanto complicado, ultraje desde o início, porque é falar de algo que não tenho propriedade, embora não há como negar que hoje essa história seja parte de mim. Seja lá a quem pertença essa história, de qualquer maneira compartilhá-la com um público indefinido, é uma decisão delicada. Então eu peço dê o seu melhor - imagine-se entrando em um templo, isso ajuda.
O nome dela ainda é Andressa, ela morava em um lar de palafitas, na periferia de Manaus, onde todos dormem em redes e a assistência social tem dificuldades de chegar em dias muito chuvosos. Morou ali com mais 4 irmãos mais novos, uma irmã mais velha, a mãe e o padrasto. O pai morava em outra cidade, não o conhecera – um dia, há uns anos ele aparecera, é verdade, mas Andressa não quis saber dele. O padrasto era alcoólatra, se drogava às vezes, talvez com menos frequência do que batia em sua mãe. Nas mãos deste mesmo homem a irmã mais velha sofrera violências sexuais frequentes, por isso ela obrigava Andressa a dormir de calça jeans. Andressa não entendia o comportamento da irmã, até o dia em que entendeu, quando a irmã foi embora de casa. E então ela, que fazia aula de danças no projeto de sua comunidade, passou a ser alvo de ciúmes e o padrasto a proibiu de dançar.
Um tempo depois Andressa foi morar em um abrigo para meninas, ali pôde estudar, ter uma vida mais tranquila. Foram bons tempos, mas não era sua família e então um dia ela saiu. Morou um tempo com sua irmã e logo voltou a morar com sua mãe. Ali no bairro onde nascera fizera bons amigos na infância que agora com a idade que tinham, estavam se tornando respeitáveis. Organizaram-se e conseguiram se estabelecer no mercado de revenda drogas. Quase não havia pessoas do sexo feminino trabalhando nisso e Andressa se interessou. Segundo ela as mulheres nesse meio possuem uma aura de respeito pela coragem e porque disfarçam bem, não chamam atenção os policiais. A partir de então o padrasto nunca mais tocou nela. Em sua frequentes crises continuou batendo em sua mãe, mas Andressa não tolerou por muito tempo, enfiou a tampa da panela de pressão no nariz dele. Seus amigos perguntavam por que ela não deixava que dessem um fim nesse cara, que se ela quisesse era só pedir, e que afinal, ele devia as drogas que consumia. 
Aos 15 anos ela engravidou de seu namorado, um bom rapaz ali do bairro. A família dele praticamente adotou Andressa e a menina recém-nascida. Mas isso durou cerca de um ano a mais, Andressa estava por demais envolvida com sua turma de amigos, onde conseguia trabalho e reconhecimento - além do mais ficaria tranquila enquanto sua filha estivesse longe do padrasto. Como toda boa pessoa de confiança, Andressa não gostava de se drogar, usava cocaína apenas quando tinha que virar a noite trabalhando, preparando as mercadorias. Com dinheiro conseguia ajudar a família e comprar algumas roupas e maquiagem para sair à noite nas festas da cidade.  
Passou a namorar seu colega, Antônio, um dos líderes do grupo. Até que um dia um grupo bem maior, que comandava o tráfico em outros bairros da cidade resolveu tomar aquele também. O casal estava na rua em um fim de tarde quando um dos cinco atiradores de elite do grupo rival - e que por um acaso era primo de Andressa - disparou meia dúzia de tiros contra Antônio. Chegou ao hospital quase morto. Andressa vela todo o período de coma dele, mas ainda depois de acordar ele ainda fica alguns meses internado pra se recuperar (quase) por completo. Nesse tempo Andressa ainda o visitava, mas ela, assim como quase todos do grupo, agora trabalhava para o outro cara.
Se esse cara, conhecido como Peixe, tinha alguma desconfiança dela, por ser a companheira de Antônio, podemos dizer que o quadro se reverteu quando em uma noite Andressa, pega por policiais e torturada, até se cagar de dor, não abre a boca. Sabia que provavelmente teria um fim pior caguetasse, como já havia visto acontecer com outros. Ela mesma serviu-se de isca pra armar morte de alguns deles. Como qualquer um do tráfico, ela conhecia casa, carro e barco do homem que mandou matar seu namorado e após seu ato heroico diante da policia, ela passou a frequentá-los cada vez mais. Mas também ficara mais presa, é verdade. Já não podia visitar o namorado que havia saído do hospital, pois a ausência dela seria rapidamente notada no bairro. E ele não podia botar os pés naquele território se quisesse continuar vivo.
Mas um dia "bateu uma loucura", como gosta de contar, e ela foi encontrá-lo. Após algumas semanas descobriram onde estavam vivendo e um dos matadores de elite apareceu no muro da casa. Sem sorte, eis que quem morre é ele. Com menos sorte ainda para Andressa e Antônio, o corpo morto era o melhor amigo e conselheiro de Peixe. Andressa sabia que ao sair do bairro sem avisar, ficara em uma situação difícil, agora então, o caminho de volta se fechara como mata virgem. Ninguém ia querer saber até que ponto ela tinha armado tudo, todos tinham motivos para desconfiar dela, inclusive Antônio.
Ao saber do assassinato de seu irmão, o chefe perdeu a cabeça: mortes injustificadas começaram a ocorrer na comunidade. Os moradores do bairro, que antes tinham boa relação com Peixe, já estavam revoltados. Andressa, agora com 17 anos, foi buscar ajuda com as mulheres do abrigo onde morara. Vivia escondida ali, pois meninas passavam na rua e comentavam que estavam procurando-a, rapazes disfarçados entravam no abrigo para tentar encontrá-la  Seu primo, da elite do grupo de Peixe, avisou a mãe de Andressa, de que a prima seria a próxima. 
As profissionais do abrigo, sem poder garantir a segurança de Andressa por muito tempo, chamaram a polícia, desta vez a adolescente estava disposta a contar o que fosse preciso. Andressa esperava um novo filho. A delegada, recém nomeada, foi colher seu depoimento e logo que entendeu do que se tratava, teve medo de morrer ali mesmo. Exaltada, ligou o carro e mandou a menina entrar no porta-malas. Andressa teve de ser segurada para não estapear a doutora...
O que me impressiona nessa história é que Andressa foi a única a gritar no meio de condições tão opressões e a perceber que quando se grita, te oprimem ainda mais.
Penso em sua irmã que viveu no mesmo ambiente que Andressa, viu os irmãos doentes passando fome, sofreu diversos tipos de violência e fugiu de lá, casando-se nova. De que adianta superar a falta de dignidade se não se faz justiça? Sua mãe, além de apanhar e não se defender, se recusava a aceitar as denúncias das filhas sobre o que o padrasto fazia com elas. Apesar de tudo o que vira, o que fez Andressa sair de casa e ir parar no abrigo pela primeira vez, foi justamente a falta de posicionamento da mãe que se recusava a testemunhar a denúncia da filha contra seu marido. Elas brigaram no meio da rua, Andressa gritou que ele era um pedófilo, apanhou e fugiu. Hoje Andressa entende melhor sua mãe, mas não é como ela: tinha suas brigas com Antônio, mas revidava e batia bem na cicatriz de bala mal fechada em sua barriga.