domingo, 26 de abril de 2009

cacos

Talvez a forma do amor seja a de uma esfera - como uma bola de cristal. Ao menos assim se manifesta quando lhe rompem em pedaços, lhe quebram.
Ele, que era só forma.
Estilhaça-te. E não sobram unidades volumosas. Só restam pedaços disformes e estes se fazem apenas função. Destina-se a sangrar quem lhe quebrou, não por raiva nem deliberadamente. É a forma que fatalmente assume.
Ainda julgam o amor cruel, porque ele faz sangrar. Como se apenas o sangue significasse sofrimento.
Acontece que a dor do corte é óbvia, carnal, é sentir o substancial presente, inquestionável, tão certo quanto é a coagulação.
Mas quando se é resíduo de algo, como o sentimento despedaçado, sua própria existência não passa de intuição de um passado. A única confirmação de realidade é perfurar aquele que o transformou em estilhaço. No pequeno espaço de tempo em que tudo se quebra e o sangue escorre, esquece-se o que é que foi quebrado, pois as partes não podem ter noção do todo.
Vou lhes contar do sofrimento de fazer sangrar.
Quanto mais os cacos perfuram, mais percebem o que não são, que lhes faltam partes. Esse sofrimento, da incompletude é sua condição de caco, um vazio consciente e incerto, vazio que não consiste em morte. Em suspiros dilacerantes, uma dor que não sangra.

fundo sonoro: Where I End You Begin - Radiohead

segunda-feira, 20 de abril de 2009

o que não desce na descarga

O elefante assiste o segundo em que eu abro os olhos e os primeiros movimentos do corpo que quer se render, me debruço, me enrolo, querendo voltar à escuridão insípida do sono. Ele sabe o peso que me é ao acordar, ele é o peso.
Não o olho mais, antigamente passava noites em claro fitando-o.
Quando levanto vou direto ao banheiro, vagarosamente sento e esvazio a bexiga, lavo a cara e volto pro quarto para puxar os lençóis. Aliso, arrumo, e por último - e completamente irrelevante - modelo o travesseiro. Não sei mais julgar quanto estou melhor ou pior. Aqui dentro é como se eu nunca arrumasse a cama.
São fases em que o tempo diferente, tempo em que a saudade não existe. Nem nem sua cogitação é bem-vinda.
O elefante apenas observa, possui aquela sabedoria paciente de quem tem consciência de seu tamanho. O que foi feito não tem volta, mas também não tem como apagar... É preciso continuar vivendo, por isso passo a agir de forma a ignorá-lo, ou seja, não tomando atitude alguma a respeito. Praticamente não se escolhe e se costuma com o peso. Não posso fingir que não é nada, mas também já não é mais nada de novo - daí minha indiferença.
Se ele ficará eternamente, acredito que não. Estes seres sabem a hora de ir embora - quando sentem que vão morrer - e vão em paz. Até lá pretendo parar de desejar que para cada elefante desta cor, exista um outro, de mesma magnitude, mas de uma cor azul de culpa, no quarto quem não mede o que faz.



sexta-feira, 16 de janeiro de 2009

Um mergulho

O espelho outra vez, dessa vez aquele do banheiro, com bolinhas brancas da pasta dental. Não escovava os dentes, muito menos o cabelo, não se maquiava, não lavava a cara recém acordada nem estava a observar os poros empretecidos. O cabelo estava molhado, todo para trás deixando a cara nua, também molhada. Havia sua imagem embaçada e no vapor, palavras podiam ser lidas. Sentia que tudo que escrevia era de uma infantilidade que lhe envergonhava. Palavras fortes como "sempre" e "nunca", as quais se apega tão dramaticamente, mas que no final não denotam diferenças. Parou de enxugar as orelhas, passou a toalha no espelho e olhou-se nos olhos. É importante olhar nos olhos ao conversar, mesmo num diálogo mudo e também quando o interlocutor não existe fora de você.
Lembrou-se dessa imagem, pois já a experimentara quando era garota. Quando seu mundo era seu e a cada vez que conhecia um novo pedaço, sabia falar sobre ele com a beleza da espontaneidade. Não conhecia-o ao todo com muita clareza, mas é assim, com tudo que é profundo. E ao mesmo tempo não lhe era absolutamente escuro, não para seus olhos. Como acontece aos animais que vivem nos abismos dentro dos oceanos.
Agora parecia que o mundo não lhe pertencia. Ás vezes parecia que formado de outros quase infinitos oceanos, que ela jamais alcançaria e por isso tudo parecia superficial. Ou talvez ele seja de uma simplicidade técnica que caberia em manuais de utilização como esses campeões de venda nas livrarias. O problema era não saber se era um ou outro, era desconhecer, por isso sentir à parte, uma incurável indiferença; não que isso a deixasse triste, era mais como se, olhando de fora, tudo estivesse em seu devido lugar.
Enxergava com seus olhos, novamente e nada mais do que isso lhe dava confiança. A segurança que só deseja porque é o que sempre permanece, o que sobra.
* * * *
Eles pouco se conheciam naquela época em que ele olhava muito em seus olhos e isso não a deixava á vontade, não por se ver espelhada nas retinas dele, mas ao contrário, porque não se via. A imagem formada nos olhos dele era tão brilhante que lhe ofuscava a vista. Por isso ela piscava muito. Ele ria ao vê-la piscar e ela ao sentir-se olhada. Entre risos e olhares ela não só acostumou-se a ver-se nos olhos dele como passou a ver-se através deles. Mergulhou no lago brilhante e espelhado que eram.
Hoje, diante do espelho, voltou a enxergar com seus próprios olhos, percebeu como passara esse tempo limitada como numa lagoa e reconheceu então seu oceano, azul imenso de solidão, gotas d'água salgada.

fundo sonoro: Great Expectations - Cat Power