sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

A voz surgia após alguns minutos caminhando até o ponto de ônibus depois do trabalho. Narrava e enquadrava sua vida naquele espaço junto das pessoas que também começavam a fazer seu trajeto pra casa e compunham a paisagem cotidiana no crepúsculo. A voz observava também seus passos firmes em delicadas sapatilhas, figura que lembrava uma velha chinesa e sua magnífica força em um corpo que resiste no atrito do andar em um solo ainda mais duro.
Em meio ao barulho as pessoas dizem que não conseguem ouvir seus próprios pensamentos. Também nesse caso a voz surgia por conta do silêncio, mas que emergia de dentro. Por alguns instantes conseguia não pensar em nada, deixava a narrativa se guiar pelas sensações que o mundo oferecia. Queria que a narradora continuasse ali para sempre, pois lhe dava segurança. Nada a fazia se sentir tão plena do que narrar sua própria história.
Curiosa a relação entre a voz e os espaços. Durante o sexo, vez ou outra a voz surgia trazendo o mundo e seus personagens para o quarto, o que a fazia gozar com certa sede de vingança.
Em casa conseguia ouvir a narrativa quando passava um tempo reclusa. Todas as vezes quando entrava no banheiro, sem que ao menos percebesse, os pensamentos mais obsessivos a trancavam no cubículo do box ou na frente do espelho. Tudo o que não tem coragem de sair era remoído ali. Quando criança no caminho da escola para casa, possuía pensamentos repetitivos conforme os locais que passava, o desenho da rachadura na calçada, o padrão da grade do portão, o nome engraçado de uma flor, o olho morto de um cachorro.