segunda-feira, 5 de junho de 2017

Notas sobre o fim


Numa manhã de quinta-feira o oficial de justiça foi até minha casa entregar uma intimação para que eu comparecesse na semana seguinte a uma audiência. Na ocasião o promotor propôs 20 horas de trabalho de cada pessoa do coletivo para que se arquivasse o caso sem julgamento. A denúncia era de "perturbação do trabalho e do sossego alheio" em decorrência de um ato por melhorias no transporte coletivo. O promotor viu que não valia a pena acionar a justiça por conta do ocorrido. A verdade é que no dia do ato, o major acionado queria mostrar serviço quando voltasse à delegacia e então ficou provocando a visível inexperiência do administrador da região. A situação, que então já tinha sido resolvida entre nós, se revirou. Para não negar sua macheza perante o militar, o administrador autorizou nossa detenção e não satisfeito fez a denúncia de cárcere privado, uma acusação para além do razoável. Mas a dinâmica do poder em nossa sociedade é essa mesmo, se você tem autoridade e recusa-se a usá-la, você se arrisca a perdê-la. Institucionaliza-se a ideia que é sempre melhor abusar do poder do que subutilizá-lo. E aqui estamos...
Lá no tribunal, quando me indicaram a entidade para prestar as horas de serviço, disseram que tratava-se de uma creche. Mas quando cheguei no local era só uma casa usada como escritório. "Aqui é a sede", me explicou o motorista de um dos automóveis parados na frente. A mulher que me atendeu informou que o trabalho que precisavam ali era de limpeza, "Te avisaram isso lá?", "Não disseram nada" - respondi. Ela parecia um pouco constrangida, disse que eu ia pagar as horas rapidinho, que eu podia fazer os horários que eu quisesse e que ninguém ia ficar me cobrando. "Gostaria que você começasse pelos banheiros, você se importa?". Fiz que não, "eu já lavei muito banheiro na minha vida" - apesar dessa minha aparência branca e delicada, pensei.
A limpeza foi a melhor coisa pra aliviar um pouco da raiva que eu sentia naquele lugar. Tendo que reorganizar meu tempo para estar ali, com tantas outras prioridades em mente. Os funcionários atendiam o telefone dizendo "Casa de passagem". Mas não havia ninguém "de passagem", a não ser eu mesma. Nem camas havia para alguém dormir, os quartos eram usados como depósito de material de limpeza e alimentos recebidos como doação. Senti-me em um enredo de Kafka e Orwell ao mesmo tempo. A televisão na sala ficava ligada nos jornais que contavam dos milhões de reais desviados pelos governadores na época da Copa do Mundo e eu ali sendo punida por conta de uma manifestação popular. A perseguição à política institucional não alivia em nada a criminalização dos movimentos sociais e influi menos ainda na intolerância aos pequenos crimes da população marginalizada, que permanecia como prato principal nos noticiários do meio-dia.
Eu consegui desfocar da raiva significando o que era ocupar o lugar do serviço de limpeza que é para ser um lugar de humilhação e punição. Pensava na minha casa que eu não tinha tido tempo de limpar. Mas me vinha também o estranhamento do lugar da faxineira que não foi construído pra mim, apesar da condição de mulher. Muitas das sujeiras só quem está limpando é que vê. E apesar do contato com o sujo, cresce um senso de dignidade muito forte. Uma consciência que quem não limpa a sua própria sujeira nunca terá. Mas por mais empatia que eu tenha vivenciando nessa situação, minha voz interna logo se perdia na abstração da experiência particular, construindo o cotidiano de uma diarista que se tornou ambidestra porque em todas as casas em que chegava a luva da mão direita já estava estragada, só sobrando a esquerda para usar. Mas que bobagem, a luva esquerda também estava furada.
Devaneios como esse tem me travado de escrever há muito tempo. A sensibilidade humanista na qual fui criada me coloca esse dilema ético. Ela me aproxima do outro, me faz uma pessoa melhor, mas não deixa de ser uma sensibilidade limitada ao lugar social e que quase nunca consegue escapar da exotização ou do distanciamento impotente. Sempre me vejo caindo nisso e assim vejo quase todas referências culturais e intelectuais da esquerda branca progressista. Utilizar a alteridade para dizer, no fim, que sua existência só não é mais bela do que minha capacidade de narrar sua dor. Queremos nos aproximar do outro, mas antes de escutar já estamos mentalizando nossa redenção, a expiação de uma culpa histórica. Borbulho por dentro na busca de construir outra forma de lidar com a sensibilidade que me constituiu, que é bem menos libertadora do que se dizia. 
Passei a semana toda com a raiva não elaborada e só consegui voltar na entidade na semana seguinte. Menstruada. Nenhuma propaganda de absorvente ou remédio para cólica fala das dificuldades de fazer faxina menstruada. Da preocupação de sujar calça quando precisar abaixar e o patrão olhar sua bunda. Mas nesse dia acabei dando sorte, me pediram pra parar a faxina e ir organizar a despensa, pois havia outra pessoa já fazendo limpeza. Duvidei que era uma pessoa pagando horas à justiça porque era uma mulher de certa idade.  Ela se referenciava ao funcionário da entidade de "seu fulano" e pedia desculpa por fazer muito barulho enquanto lavava um balde de metal infestado com larvas de mosquito. Quase me convenci de ela era uma diarista contratada. Mas em dado momento ela sentou na sala para descansar em frente à TV que falava sobre a chacina de dez homens pela polícia no Pará e nesse momento começamos a conversar. Ela contou do filho que perdera e que era PM. "Nossa, morreu como?" "De suicídio". "Sinto muito. Essa profissão é muito complicada né?". "Mas não foi por causa da polícia não, ele trabalhou lá 9 anos, era inteligente, nasceu para estudar, você precisava ver. Foi por causa da namorada, era muito apaixonado por ela. Quando ele conseguiu comprar um apartamento, foi mostrar a ela o lugar onde morariam juntos, mas ela não quis continuar com ele. Ele se matou em seguida, no estacionamento do prédio". Me esforcei pra abstrair a conclusão da senhora de que um comportamento passional associado ao porte de arma não tivesse relação com a instituição policial e sim com a mulher que não queria mais se casar. Só assim poderia continuar oferecendo alguma escuta. Então ela me explicou que entrou com pedido de pensão da PM, um direito seu, já que seu filho não era casado e ela estava fazendo tratamento contra o câncer que era muito caro. Ela recebia aposentadoria por invalidez por conta da doença, mas era pouco. Acontece que entre luto, traumas e as burocracias de se perder um filho e de ter sua casa toda vasculhada pela PM em busca da arma de serviço do rapaz (que não foi a arma que ele usou pra se matar), a senhora assinara um documento afirmando que não recebia nenhum "benefício" - ou qualquer que fosse o termo técnico que usaram para não-explicar o que o documento significava. Ao que parece ela não poderia receber dois "benefícios" (sua aposentadoria por invalidez, mais a pensão por morte do filho), mas a PM não satisfeita em apenas recusar o pedido de pensão, entrou na justiça contra a senhora, alegando que ela agia de má fé. A defensora que acompanhou a senhora aconselhou que ela dissesse que a assinatura não era dela ou que não se lembrava de ter assinado. Mas a senhora não achava certo mentir pra juíza. Na sua consciência ela sabia que tinha assinado e Deus também sabia. Pegou 60 horas de trabalho. Ela é negra, mora na Chaparral, divisa entre Taguatinga e Ceilândia e vai de ônibus até Taguatinga Sul fazer faxina nos dias em que não está se sentindo tão mal com efeitos da quimioterapia que faz semanalmente. Ela também cuida de um neto que vai ter que parar o curso na faculdade particular, para ela poder pagar o tratamento. Já entrou na justiça para receber os remédios gratuitamente, mas o juiz negou alegando que o governo está sem dinheiro. "Agora ele vai ter que parar de estudar, senão eu morro". Eu só consegui representar o papel de me mostrar ao seu lado e afirmar a ela o absurdo que era aquela história que, para minha dor, já era contada com naturalidade. Me contou ainda de sua filha, que vive mudando de cidade acompanhando o marido que trabalha no exército e quer voltar pra cuidar da mãe, mas ela disse que não aceita porque a filha tem obrigação de ficar com o marido "o que Deus uniu é para sempre". Eu queria ter conseguido dizer que não era assim, mas como mexer nas certezas de uma mulher que já enfrentou tantas vezes a morte? Após o silêncio ela cochichou comigo "Esse lugar aqui é o que mesmo hein?" "Também não entendi e não sei se devo perguntar" "Também não. Só sei que eu venho".
Voltei a desencaixotar e emprateleirar desinfetantes pensando em como ali na "casa de passagem", uma instituição filantrópica, permitiam que aquela senhora trabalhasse doente. Foi quando a moça da entidade entrou no depósito pra perguntar se estava tudo bem. Comentei como a história daquela senhora era triste. Ela concordou, mas o assunto não foi pra frente. Minutos depois a senhora estava limpando o chão da sala com sabão e vassoura. Mais tarde, enquanto eu desmontava as caixas de papelão na varanda, ela sentou no banco para descansar novamente e entre assuntos amenos, perguntei se ela não conseguia um atestado médico dizendo que ela não podia fazer esforço. Ela me explicou pacientemente que durante a audiência, ela e a defensora apresentaram laudos de três oncologistas comprovando a doença, mas a juíza sentenciou o crime de falsidade ideológica com as horas trabalho, provavelmente sentindo-se até caridosa.
Eu, por minha vez, pensei várias vezes em falar mais diretamente com a mulher da entidade que é responsável por registrar nossos tempos de trabalho. Queria sugerir se não tinha como deixar a senhora descansando ou, de alguma forma, amenizar o sofrimento dela, ocasionado desnecessariamente por um sistema de justiça falho e desumano. Mas eu tenho menos coragem do que aparento. Eu tinha medo de gerar um mal estar que atrapalhasse meus trabalhos na instituição e de ficar presa nessa teia judicial por tempo indefinido. Eu tinha medo da resposta que no fim é: cada um tem que cuidar da sua vida. Não podemos fazer nada, pois só seguimos a lei. A minha verdade é a de que não se pode seguir ordens cegamente. Só que eu estava lá porque me meti onde não devia, era o que eles pensavam, embora não dissessem. E de alguma forma aprendi a lição que queriam, afinal quem era eu pra me revoltar mais do que a própria mulher, que apesar de tudo, ainda demonstrava sincero afeto pelas pessoas que ali trabalhavam? 
E há alguma verdade nisso. Não quero ser heroína, não quero salvar ninguém mostrando o caminho da verdade. Quero construir junto esse caminho. Por vezes quero mesmo é destruir tudo.  Quero me revoltar ainda que a injustiça não tenha acontecido comigo diretamente, mas me atinge porque ainda existe um nós, existe uma humanidade que foi violada e isso me diz respeito. Mas isso não pode me levar ao heroísmo, a aparecer no momento de crise da vida das pessoas trazendo uma solução reformista. Não se muda as coisas agindo apenas nos momentos críticos. Como têm dito alguns pensadores, depois da guerra fria a esquerda entrou na lógica da emergência, lógica que nada modifica e nada constrói. Ao contrário, nos deprime, pois não tem horizonte, só tem migalhas. E não vamos mudar isso exercendo nossa sensibilidade humanitária e heroica. É preciso estar presente no cotidiano, construir organicidade, estar junto para construir junto, sabendo que a mudança é processual e dolorida também. É a desconstrução contínua de si frente ao outro para se construir um nós. É lidar com a certeza de que muita coisa está praticamente condenada, que é preciso lidar com a morte, sem indiferença e sem salvacionismo. É preciso admitir o fim para que o novo venha. E mesmo que ele não venha, se esse for o fim dos fins, que ainda assim tenhamos o compromisso de construí-lo do nosso jeito.


2 comentários:

rigo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
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