sábado, 26 de setembro de 2020

As penas da utopia

 

As aulas iniciaram de forma remota, com encontros virtuais, após passarem por um período de adaptação por causa da pandemia. Uma pessoa de nossa turma mora em aldeia indígena e quando entra na sala ou ligava o microfone, o som do ambiente se destaca. Em contraste com a voz dos demais alunos e do professor, isolada em um fundo opaco, a dela vem acompanhada de um farfalhar de galinhas e passarinhos. Eu consigo visualizar a terra batida e a sombra das árvores. O cheiro do mato por pouco me escapa e me lembro do plano de ter uma casa com galinhas no quintal. Minha mãe e minhas tias contavam com alegria que cresceram em uma casa onde criavam galinhas e porcos – acho que foi daí que tirei essa ideia.

Eu costumo assistir as aulas virtuais no quarto, me isolando do som da casa e deixando a câmera desligada para garantir a conexão da internet. Em uma manhã a voz do professor parecia tão monótona que adormeci. Nesse dia específico eu estava com cólicas e mal consegui levantar da cama para ligar o microfone e garantir minha presença.

Sonhei com papagaios e araras azuis. Uma arara estava no quarto da casa da minha avó. A ave parecia machucada, mas pulou pela janela e lá no quintal deu de encontro com uma arara mãe que a ameaçou, protegendo por sua vez, o seu filhote. Havia uma criança comigo no quarto e eu tinha que cuidar dela, então peguei-a pela mão e disse para irmos lá fora ver o animal, pois minha preocupação era que os bichos se ferissem mais. Para minha surpresa, o quintal era um espaço mais amplo do que a casa da minha avó e encontrei alguns colegas de turma. Eles também queriam ver as araras. Mas quando adentramos a cerca não conseguimos ficar muito tempo, havia um tucano azul na copa de uma das poucas árvores, enquanto as outras aves mais coloridas estavam presas em gaiolas. Por fim, quando olhávamos para o chão víamos papagaios e araras mortas, esmagadas tal qual pombos nas ruas das grandes cidades.

Acordei quando o professor fazia uma crítica a quem ele chamava de primitivistas: pessoas que idealizam a vida dos povos indígenas, como se estes tivessem a melhor organização de trabalho, divisão mais justa de poder entre gêneros e harmonia com a natureza, além de uma pureza moral.

Lembrei que antes de eu pegar no sono, o professor falava sobre nossa geração ter uma aversão à palavra progresso como se ela fosse o maior dos males da atualidade. “O progresso técnico e científico trouxe malefícios e benefícios. Hoje se fala como se o desenvolvimento fosse só problema, mas na verdade a democracia é parte do progressismo. Quem vai dizer que é contra a democracia?”

Então lembrou que estamos sob o regime de Bolsonaro – “sei existem grupos hoje que defendem a ditadura, mas tirando esses, não há quem discuta que a democracia é o melhor regime de governo”. Disse em sotaque francês.

De volta ao assunto dos primitivistas, um aluno ponderou que o postulado geral, apesar do romantismo, tratava da comparação entre as sociedades que aderiram à forma política do Estado e do capitalismo, e as demais que não aderiram e, não coincidentemente, são menos violentas, tanto no aspecto de que matam menos internamente quanto matam menos outros povos. Mas de acordo com o professor esses estudos tinham sido feitos por jovens entusiasmados que morreram cedo sem a oportunidade de reverem seus escritos, a mesma linha seguem outros estudiosos cujo maior interesse era político, projetando nos povos indígenas suas próprias utopias.

É verdade que há um tanto de ficção nos estudos sobre sociedades comunais, comunitaristas, assim como há um tanto de fé na ideia de fim necessário do capitalismo. Não vejo problema em admitir isso e ao mesmo tempo dar continuidade aos estudos que se pretendem mais descritivos junto às comunidades interessadas. A questão é que todas essas chamadas utopias, projetadas seja no passado seja no futuro, foram fundamentais para a construção das condições reais de vida social alternativas ao capitalismo e ao estado. Negar isso é podar as asas dos passarinhos, é prender em jaulas a imaginação dos estudantes.

Aprendi com os malucos, com os artistas e com as crianças da minha vida que misturar o real e o imaginado, a verdade e a utopia, nos faz mais humanos, melhores humanos. Separar demais essas duas coisas levou parte da humanidade há vários avanços, mas nos trouxe de volta um acúmulo de extermínios, guerras mundiais e bombas atômicas. Não bastasse isso, o progressismo não escapou às suas próprias utopias. Do lado de cá do globo, onde sequer o problema da fome foi resolvido, a democracia ainda existe como ficção.

Assim, o inimigo do conhecimento não é a utopia, não é o desejo, a fantasia, não é a religião ou a magia. O inimigo do conhecimento é a imposição de uma verdade através do ato de exterminar, estuprar, escravizar, explorar pessoas e outras formas de vida. É incrível e fabuloso pensar que um grupo de pessoas conseguiu fazer um homem pisar na Lua. Mas é inútil colocar esforços para que nos tornemos uma só civilização de indivíduos corpenicanos, de sujeitos extremamente comprometidos com uma ideia de verdade, assim como é demais exigir de bom estudo social a ausência de uma dose de imaginação política. O progressismo faz um bom serviço ao contrapor os terraplanistas, negacionistas, criacionistas, fundamentalistas, todas essas formas de suposto conhecimento que servem à dominação. Mas deixem trabalhar aqueles que se propõe a dar voos mais longos, imaginando como o mundo poderia ser enquanto alimentam suas galinhas.


2 comentários:

Julierme disse...

Uauuu.... Q lindeza ficou.... não da mesmo pra deixar de imaginar um mundo diferente....Se eu posso sonhar, planejar, imaginar.... onde e como quero estar qdo mais velho??? Tbm espero que criando galinhas ☺

Guto de Oliveira disse...

Adorei seu texto e sua reflexão Rai, de coração, acredito que nossa sociedade ocidental precisa muito mergulhar nesta visão, e reconectar com o nosso mundo utópico, sonhador, imaginário, nossa criança interior. Algumas sociedades africanas pré-coloniais valorizavam muuuuito esse poder que as crianças tem, e tinham até como sagradas, e isso como um poder, o ocidente vê a criança e a infância como algo inferior a fase adulta, as vezes criticamos alguém adulto chamando de infantil, olha só!
Parabéns arrasou no texto, muito sedutora sua escrita, nos prende para ler mais, nos envolve na reflexão, e nos deixa pensando como está nossa vida pessoal!